Conforme a biologia, a ciência taxonômica, não faz sentido falar em subdivisões da raça humana. Segundo a ciência, não há divisão de raças. Que maravilha! Uma vez provado que não existe raça, não existe racismo! Quem dera fosse fácil assim. Por não ser assim, por as pessoas literalmente sentirem o peso do preconceito na pele, ainda que o termo cientificamente não seja consistente, ainda é válido e por isso utilizado no senso comum, no discurso corrente em nosso dia a dia.
E talvez exatamente porque sejamos todos tão humanos, tenhamos tantas dificuldades em nos olharmos uns aos outros e simplesmente nos identificarmos como semelhantes. Nos olhamos e nos vemos baixos/altos, gordos/magros, homens/mulheres, masculinos/femininos, masculinizados/feminilizados, pretos/brancos, de cabelos lisos/encaracolados/ondulados/alisados, com olhos redondos/com olhos puxados, ocidentais/orientais, católicos/evangélicos/judeus/muçulmanos... e por aí vai... Temos o olhar treinado para reconhecer a diferença. Isso não é um problema, a priori. Somos iguais em nossa essência, em nossa substantividade de seres humanos e diferentes em nossa adjetividade, em tudo isso que nos faz diversos e únicos. O problema surge quando hierarquizamos as diferenças, quando agregamos valor e não valor ou menos valor a essas características que são intrínsecas ao ser de cada um. E, infelizmente, é isso que fazemos. É isso que aprendemos a fazer, sem nem perceber, naturalmente, como resultado de nosso processo educativo e de socialização. E no nosso processo de aculturamento aprendemos, sobretudo, a valorar o gênero e a valorar as cores, em todo o seu degradê possível.
Vamos pensar então nesse nosso Brasil, que de seus 500 anos de história (já que se considera a nossa história apenas após a invasão e colonização portuguesa), 350 anos foram de convivência e conivência com a escravidão, a opressão e o extermínio de índios e negros. Podemos ser ingênuos a ponto de achar que não somos produtos desse processo histórico de racismo? O fato é que somos constituídos, em nossa formação, por uma ideologia sexista e racista. Assim fomos educados, assim ainda educamos as nossas crianças. Só podemos sair dessa condição também por um processo de reeducação, de ressignificação de valores e crenças, de um olhar para dentro, a partir de uma reflexão profunda, de uma tomada de consciência, quando conseguirmos criticamente avaliar quais são os nossos modelos mentais que orientam o nosso discurso, o nosso modo de ver e pensar o mundo e consequentemente de agir e nos relacionar.
Já perceberam como o nosso repertório linguístico é repleto de expressões estigmatizantes e preconceituosas? "Preto é f., quando não faz m. na entrada, faz na saída.", "fulano tem o pé na cozinha", "Tinha que ser preto!" "Tinha que ser mulher", "Mulher no volante, perigo constante", "Lugar de mulher é na cozinha", "Essa aí é mulher para casar (em contrapartida à mulher apenas para a diversão), "é um preto de alma branca".....
Alguns acham que destacar a raça ou a cor da pessoa pode estimular a discriminação. Ora, que falácia! Não é assim, a discriminação está aí posta. O que precisamos fazer é justamente abrir os olhos para ela. Não podemos negá-la, sob o risco de nunca podermos dirimi-la. O primeiro passo para a cura é assumir a doença - não é assim na medicina? Nos males sociais, como o racismo, o sexismo, a homofobia... é assim também. E se assim é a constituição da nossa sociedade, podemos achar que nas organizações, nas empresas, nas instituições públicas, tudo isso fica da porta para fora? Que nossas relações de trabalho, que os processos de relacionamento e gestão nas organizações não são pautados por toda essa rede de significações que fazem parte do que somos, acreditamos, pensamos, falamos? O racismo e o sexismo estão presentes na rua, no trabalho, dentro das casas. O número aviltantes de casos de violência contra a mulher, que recentemente estão sendo mais bem divulgados, felizmente, estão aí para confirmar essa afirmação.
O fato de se poder segmentar os grupos sociais em gênero e raça, por exemplo, permitiu a obtenção de dados que hoje são valiosíssimos para compreender a realidade e estabelecer políticas públicas de correção. Uma vez tendo o IBGE mapeado (ainda que a duras penas e com algum grau de imprecisão) o Brasil, por gênero e raça/cor, pudemos ver que em 2011, as mulheres representam a maior parte da população, têm nível de formação igual ou superior, mas não tem inserção correspondente no mundo do trabalho - nem em acesso a emprego (o nível de desemprego feminino é maior que o masculino), nem em acesso a cargos de alta gerência (o que contribui para levar ao quadro de menor nível de renda, juntamente com o fato de que as mulheres estão expostas aos postos de trabalho mais precários. Quando se observa o recorte de raça/cor, vê-se uma realidade ainda mais cruel. Os negros (sobretudo as negras) são menos escolarizados, tem o menor padrão de emprego, os piores níveis salariais. Por isso é tão importante termos informações segmentadas. Diferenciar não é estimular o preconceito, é possibilitar evidenciar as distorções e assim, estabelecer políticas para corrigi-las.
De modo geral, podemos dizer que no Brasil quando se fala em gêneros e raça/etnia/cor, existe isonomia (igualdade na norma, que a constituição e os estatutos brasileiros prevêem e teoricamente garantem). É verdade. Nossa constituição cidadã nos garante isso: todos são iguais perante a lei e toda forma de preconceito é repudiada. Entretanto não podemos dizer o mesmo sobre a isotopia (igualdade na divisão dos espaços, na divisão do poder). Se pararmos para pensar que praticamente 50% dos brasileiros são negros e pardos e uma parcela semelhante é composta por mulheres e olharmos em qualquer espaço de poder - o parlamento, os ministérios, as secretarias de estado, as empresas... enxergaremos essa mesma proporção??? A pluralidade que é defendida no preâmbulo de nossa constituição não se efetiva de fato. E é isso que precisa ser corrigido. Se não, podemos dizer que estamos apenas brincando de ser um país democrático.
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