Hoje comemora-se o dia internacional da mulher. Eu não comemoro. Primeiro, porque o próprio fato de se ter um dia especial significa que ainda falta muito para se caminhar, que o digam os índios e os negros. Segundo porque as estatísticas e as notícias no jornal confirmam isso.
Em pesquisa do DataSenado feita com 827 mulheres de todas as capitais do país, dezenove por cento revelou ter sido agredida dentro de casa, por marido, companheiro ou namorado em 81% dos casos. Fico imaginando quantas não revelaram e como é a situação fora das capitais. Destas, apenas 28% fizeram denúncias. 70% não convivem mais com o agressor (contrariando a máxima de que "mulher gosta de apanhar").
Também se pesquisou que 48% das entrevistadas conhecem a Lei Maria da Penha e 35% já ouviu falar da legislação. Sinceramente tenho dúvidas da extensão desse conhecimento.
Aliás, ultimamente também se comomora muito essa lei (Lei 11.340, de 2006). Seu texto é realmente sublime, embora tenha vindo com alguns séculos de atraso. Mas, assim como o ECA, está longe de ser vivenciado na prática.
Ele diz assim, em seu início:
Art. 2o Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.
Art. 3o Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
§ 1o O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
(...)
Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. (...)
O problema, além da dificuldade de se fazer cumprir tudo o que estar ali, é ainda a mansidão das penas. Foram proibidas as penas alternativas, como pagamento de multas e cestas básicas. Como assim? Antes era possível? Tipo espanca a mulher e paga uma cesta básica para as crianças que tem fome? O crime de ameaça passou a ser punido com até seis meses de cadeia, a violência física pode resultar em até um ano de detenção, lesão corporal em até três e, quando a agressão resulta em morte, a pena chega a 12 anos de reclusão!!!
Espera aí, o 'ex' machão espanca até a morte a mãe de seus filhos, que estará mortinha da silva para sempre, pega no máximo 12 anos de cadeia e ainda corre sério risco de ser solto bem antes, por "bom comportamento"???
Estamos comemorando o quê mesmo?? Nosso código penal é que não é!
Essa semana duas notícias me deixaram profundamente incomodada. Uma foi a da criança pernambucana de 9 anos, engravidada pelo padrasto, após ser molestada por 3 anos seguidos. Não sei o que me causou mais espanto - o caso em si (que reconheço está longe de ser raro, o que é trágico e revoltante) - ou a celeuma em torno do aborto. É por essa e outras que não consigo sentir-me parte nem freqüentar essa Igreja na qual fui batisada. Como partilho da mesma opinião e concordo em gênero, número e grau com a equipe médica que fez o procedimento, considero-me igualmente excomungada e isso nada me incomoda. Mas me incomoda muito o criminoso receber tamanha clemência e compreensão eclesiástica, por seu crime ser "menor". Adorei a repórter da Band que disse para o bispo "com todo o respeito, mas o senhor não diria isso se fosse mulher". Sinceramente, não considero que ser violentada por três anos seguidos, engravidar e correr risco de morrer, ter a infância usurpada, correr risco de desenvolver inúmeras doenças, de ter inúmeros traumas e seqüelas físicas e psicológicas para o resto da vida é menos grave que um aborto de um embrião que não deveria ter sido concebido.
Outra notícia, esta local, de um polícial militar de 39 anos que teve a audácia de agredir a ex-namorada de 23, no estacionamento do Palácio do Buriti, sede do governo do Distrito Federal. O indivíduo, além de tê-la esmurrado na frente de várias pessoas, arrebentou a coronhadas o carro do colega com quem ela tinha ido almoçar, junto a mais três amigas, deu três tiros (com uma arma calibre .40) contra policiais (e qualquer alma viva que passasse por ali) e resistiu à prisão. O gracioso, como tantos outros, já respondia a dois processos por agressão a mulheres. Mas como é de praxe no sistema penal brasileiro - direito à liberdade total e de cometer novos e tantos crimes até que se prove em todas as instâncias que você fez o que todo mundo sabe que fez.
Novamente pergunto. Comemorar o quê? Direito de viver, de não ser agredida, violentada, de trabalhar, de votar, de ser cidadã, de ter ampliado o número de mulheres na política e nas comitivas olímpicas??? Isso é só o mínimo. Por isso as celebrações deverim ser tão mais cautelosas. Eu quero muito mais!!!
Quero um mundo em que homens e mulheres, com todas as suas diferenças, coexistam em igualdade no mundo. Quero que as mulheres sejam também escritoras da história, protagonistas de sua vida e do mundo em que vivem. Que tenham domínio do seu corpo, que possam ser livres para fazer suas escolhas. Que os homens sejam realmente companheiros, que assumam igualmente a paternidade e a vida doméstica, que lutem por creches que cuidem das crianças para que as mães tenham, na prática e não somente no texto da lei, os mesmos direitos masculinos.
Para não terminar de maneira tão pessimista, posso dizer que, em particular, EU tenho muitas razões para ser feliz nesse dia em que recebo rosas. Estou satisfeita com minha feminilidade, com meu corpo e todas as suas nuances – causas de dores mas também de prazeres, com meu lugar no mundo ( nesse país com tantas mazelas mas tão bom de se viver e tão melhor que muitos outros). Posso comemorar porque me realizo com o meu trabalho, com a minha filha, que me possibilitou experimentar a maternidade e me transformar com ela e, sobretudo, com o meu marido – companheirão 100%, homem com H, que divide comigo a vida – o que inclui a parte boa e toda a burocracia nela envolvida (contas, supermercado, eletrodoméstico com defeito, ralo entupido....), que tanto me ensina e que também aprende comigo, que me permite desfrutar de minha tão preciosa individualidade e liberdade e me faz tão feliz, amada e respeitada. Que desde muito cedo percebeu que não suporto concessão de vez, abertura de porta de carro, ou qualquer gentileza que possa custar ou significar perda de lugar no mundo. Não quero ser tratada como bibelô, como um brinquedo fragilzinho, que tem que ser cuidado e mimado. Não sou objeto e me recuso a ser tratada como tal. Sou sujeito. Sou gente. Sou humana. Sou mulher. Não pertenço. Partilho. Decido. Escolho.
Isso EU posso celebrar.
A todas as mulheres do mundo, o desejo de que um dia todo dia seja dia da mulher.
(e dos negros, dos índios, dos judeus, dos deficientes físicos e mentais, das crianças, dos animais silvestres, das baleias, das florestas...)
Aproveito, ainda, para desejar que todas as pessoas vivam em paz, num mundo sem posses nem fome ou religiões, numa fraternidade de homens e mulheres igualmente compartilhando o mundo.
Aliás, tenho a impressão que algum sonhador já imaginou isso antes....
Um comentário:
Ju,
Adorei o seu post!
Muito realista, muito sensível!
Muito bom para pessoas como eu, pouco politizadas, pouco engajadas, mas muito sensíveis, que de vez em quando precisam de umas saculejadas assim para refletirem sobre assuntos e atitudes tão relevantes!
Também fiquei feliz por sua comemoração pessoal e por perceber que eu também tenho muito o que celebrar, apesar de tudo!
Um grande beijo,
Flavinha.
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