domingo, dezembro 09, 2007

Meu avô

Hoje faz 3 anos que meu avô morreu.
Há quem morra e passe dessa para melhor, há quem desencarne, há quem vá sentar-se ao lado do Senhor, há quem vire purpurina. Acho que meu avô cansou-se. E morreu.
Meu avô era especial. Ele era único.

Às vezes ainda sonho com ele. Ou acordo pensando nele. Noutras me pego quase levantando para visitá-lo em sua casa. A verdade é que ele parece estar por aqui.
Ainda ouço sua voz, rio de suas brincadeiras, choro com saudade.

Quando éramos pequenos ele brincava de cavalinho em seu colo. Pedia para repetirmos, paca, tatu, cotia não. Demorei anos para entender a brincadeira. Ele nunca explicou. Ainda me lembro o dia do insight.

Ele me contava histórias do "seu tempo". De quando era criança e aprontava horrores com seus irmãos. Levava surras homéricas por isso. Seu pai chegava em casa, quando eles estavam dormindo, ouvia o histórico diário da mãe, acordava-os e avisava que, no dia seguinte, quando acordassem, levariam uma surra.
Tenho minhas dúvidas se, mesmo naquela época esse pai acreditava que estava educando. Hoje, vejo como sadismo.

As surras não serviram senão para humilhar, deixar traumas e servir de exemplo de que pai não podia bater em filho. Não bateu nos seus. Uma de minhas tias tem uma lembrança de que levou uma palmada uma vez na sola dos pés de tanto que teimava em andar descalça. Como era coisa rara, ficou na lembrança.

Mas não era doce de candura. Dizem que foi um namorado insuportável e parece que um marido lastimável. Ainda assim, viveu com minha avó até que a morte os separou. Parece que a coisa era meio entre tapas e beijos. A história nos chega truncada. Não sei ao certo como era.

Estudou até o ginásio, na época em que o latim fazia parte do currículo escolar. Foi servidor público mediano. Ministério da Fazenda. Motivo de orgulho. Desde que me entendo por gente já era aposentado. Teve tuberculose e enfisema pulmonar, motivo de sua sina. Bebeu e fumou quanto pôde, até se descobrir doente. Morou no Posto 6 de Copacabana nos áureos tempos do Rio de Janeiro. Conheceu os cassinos e os cabarés. Pagou caro por seus vícios.

Entoava em tom de brincadeira "tornei-me um ébrio na bebida busco esquecer aquela ingrata que eu amava e que me abandonou..." Morríamos de achar graça.

Me cantava La Marseillaise e dizia que era o hino mais bonito do mundo. Gostava de Alvarenga e Ranchinho e assisitia ao "Som Brasil" todo domingo de manhã. Embora não curtisse moda viola, gostava de ficar ao seu lado. Depois ele passava para o Domingo no Parque e ríamos juntos das bobeiras do Sílvio Santos.

Até alguns anos antes de a doença apertar ia visitar a todos da família caminhando. Chegava a andar quase dez quilômetros. Era sarado. Quando nos espantávamos com seu preparo físico, lembrava-nos de seu passado de estivador no cais do porto.

Como era aposentado, não sabia dirigir e minha avó trabalhava fora e quase não parava em casa, ele costumava fazer alguns serviços domésticos. Lavava sua roupa na máquina, passava suas camisas e lavava louça. Depois secava tudo sem deixar uma gota e ninguém podia usar a pia para não molhá-la. Jogava o lixo fora, trocava o saco e não queria que ninguém o sujasse. Tínhamos que ir lá fora do apartamento para jogar o lixo fora. Era homem de manias.

Tinha um mau-humor antológico, para não dizer patológico. Eu era a neta mais velha e usufruía de certa predileção, o que me fazia ser poupada de algumas de suas pérolas de indelicadeza. Não era incomum a gente ligar para lá e ao atender, antes de qualquer palavra, ele simplesmente dizer que minha avó não estava e bater o telefone na cara de quem quer que fosse. Quando estava de bom humor, perguntava: "adivinha quem está em casa?" E a gente já sabia a resposta, mas sempre dava corda - quem? E ele enumerava - eu, seu avô, o pai da sua mãe, o marido da Dulcinéa.... Quando alguém ia visitá-lo e ele não estava a fim de visitas ou não abria a porta ou abria, olhava e fechava na cara da pessoa. Sem cerimônias. Quando estava de bom humor, abria a porta com um sorriso "oh, a que devo essa nobre visita?". No meio da conversa perguntava - você quer que eu te mande à ou para a? E ao se despedir, sempre repetia "não tive prazer nenhum em vê-lo" e a gente respondia: a recíproca é verdadeira.

Adorava crianças e as crianças o adoravam. Tinha um carisma especial, misturado com sua antipatia. E uma coleção de bugingangas do Vasco da Gama, uma mãozinha de madeira de coçar as costas e alguns rádios de pilha para ouvir os jogos e a Super Rádio FM, que só tocava música "de velho", assim eu achava. Alguns desses foram com ele para debaixo da terra.

Quase não acreditei quando o vi estático naquele caixão. Queria que se levantasse e me contasse mais histórias de seu tempo de menino. Ou de seu tempo de adulto. Quando passaram um aperto, não tinham nada para comer e ele recebeu de herança uma coleção de sapatos que foi trocada por vidros de leite para as crianças.

Tomava café com dois dedos de açúcar. Adorava cocada. Era mineiro de Carangola e carioca de coração. Chamava minha avó de seborréia e diarréia e a gente se divertia com essa palhaçada nada politicamente correta. Ele definitivamente não era politicamente correto.

Sobre política e arquitetura, foi quem conseguiu me ensinar qual prédio era o da Câmara e o do Senado, o da abóboda para cima ou para baixo: "o prato que tá virado para cima é o dos deputados, que roubam o dinheiro do povo e o para baixo é o dos senadores, que escondem tudo lá embaixo". Nunca mais esqueci.



Não era religioso. Talvez fosse ateu. Não gostava de padres, nem de igreja. Mas ía às festividades religiosas. Foi ao batizado da minha filha, apesar do tubo de oxigênio ligado a uma sonda que não podia mais sair de sua narina. Dizia que era o homem-pipa, com aqueles tubos saindo dele como uma rabiola sinuosa.


Morreu aos 80 anos. Deixou uma esposa, seis filhos, dezoito netos, quatro bisnetos (que já viraram 8) e uma saudade que não se conta.

Um beijo, meu avô do coração.
(1924-2004)

2 comentários:

Flávia disse...

Ju,

Eu lembro bem do "Seu" Lelio, com seu tubo de oxigenio, reclamando da vida numa festa de aniversario. Nao sei de quem. Lolo ? Priscilla ?

Certamente ele ficaria feliz em saber que eh lembrado por voce, assim mesmo como ele era.

Beijinhos saudosos.

Keiko disse...

Ai, ai... essas datas pra lembrar das pessoas que passam e deixam o bom, o ruim, tudo misturado sob um manto de saudade que é sempre aquela misturinha de tristeza e alegria...