Uma amiga me disse que essa pausa para balanço estava muito grande. Concordei com ela. Resolvi fazer um esforço, chacoalhar uma cabeça ainda meio tonta para ver se, espremendo, algo interessante saía dali. Não consegui. Então vou falando do que vier na telha mesmo.
Parte I
Estou num hotel aqui em Brasília, de frente para o lago e pro céu equivocadamente nublado nesse 7 de setembro. Ele deveria estar bem azul com um sol insuportavelmente forte. Mas o clima parece estar doido mesmo. No bar próximo à piscina toca uma música boa ao vivo e, para completar escuto som de pássaros e de gente pulando na piscina. Tudo isso dá uma sensação tão grande de bem estar!!
Anteontem estávamos nesse mesmo hotel, à beira da mesma piscina que descrevi e refletíamos sobre como era gostoso juntar um grupo de pessoas que se gostavam, seus filhos e curtir um fim-de-semana diferente, num lugar aprazível para celebrar a vida de alguém querido. Pensamos que muitas vezes não precisa muito para sentirmos alegria e contentamento. Conversávamos sobre uma quantia ideal de dinheiro que uma família deveria possuir para ser feliz. Nossa teoria era que dinheiro demais e dinheiro de menos estragam a vida e atrapalham as pessoas. Que o indicado seria ter dinheiro suficiente para usufruir das coisas boas que a civilização criou – viagens, shows, exposições, vestuário, uma casa própria bem transada, livros, revistas, cursos de idiomas, internet, creme anti-sinais, múltiplos canais de televisão, bons meios de locomoção (a lista é variável conforme o gosto de cada um...) – mas que não deveria ser tanto, a ponto de a pessoa, achando que pode tudo, perdesse seu referencial de humano, mortal, num mundo ainda desigual de gente que esbanja e gente que sofre muito.
Lembramos da Neverland de Michael Jackson. Em vez de eu me afundar num processo lento e doloroso de psicoterapia e superar os traumas de minha infância sofrida e usurpada e reconstruir uma história de vida – plena e feliz, escolho o caminho mais fácil e que minha conta no banco permite: crio um mundo de ilusão e acredito que ali sou feliz porque posso resgatar uma infância que, obviamente, não se permite ser resgatada. Por fim, morro jovem, doente, sozinho e infeliz.
Uma mencionou a Ivete Sangalo que recentemente teria comprado um ecocardiógrafo para ter em casa e diariamente, sei lá, poder acompanhar o andamento da gravidez e ‘ver’ seu filho. Pensamos até que ponto isso era saudável ou neurótico. O quanto seria uma nova possibilidade trazida pela tecnologia e que aumentaria a segurança da mãe e do bebê, ou um exagero medonho que nos afastaria ainda mais da natureza, do contato íntimo entre mãe e filho, em que os instrumentos são puramente os sentidos, a intuição e o afeto.
Parte II
É noite e estamos de volta à nossa casa. Maridão comenta que, no final das contas, não há lugar melhor. Pondero que isso depende muito da casa. Algumas são uma versão do inferno.
Continuando a conversa anterior e falando de intuição, me lembro do livro que me foi recomendado há tempos, cuja primeira leitura tentei fazer em 2006, mas não avançou e que, este ano, em meu processo intensivo de autoconhecimento, decidi resgatar: ‘Mulheres que correm com lobos – mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem’, da psicóloga junguiana Clarissa Pinkola Estes.
Ao estudar os lobos, ela percebeu diversas semelhanças entre a loba e a mulher, especialmente no que se refere à dedicação aos filhos, ao companheiro e ao grupo. Observou também que, ao longo do desenvolvimento da civilização esses instintos mas naturais – a que ela denomina de Mulher Selvagem – foram sendo domesticados, sufocando o potencial criativo da mente feminina.
Segundo Clarissa, sem a compreensão dessa natureza da Mulher Selvagem, as mulheres perdem a segurança do apoio de sua alma. Esquecem-se do motivo pelo qual estão aqui; agarram-se às coisas quando seria melhor afastarem-se dela. Alguns sintomas desse distanciamento da Mulher Selvagem seriam ‘sensações de extraordinária aridez, fadiga, fragilidade, depressão, confusão, de estar amordaçada, calada à força, desestimulada. Sentir-se assustada, deficiente ou fraca, sem inspiração, sem ânimo, sem expressão, sem significado, envergonhada, com uma fúria crônica, instável, amarrada, sem criatividade, reprimida, transtornada.
Sentir-se impotente, insegura, hesitante, bloqueada, incapaz de realizações, entregando a própria criatividade para os outros, escolhendo parceiros, empregos ou amizades que lhe esgotam a energia, sofrendo por viver em desacordo com os próprios ciclos, superprotetora de si mesma, inerte, inconstante, vacilante, incapaz de regular a própria marcha ou de fixar limites. Não conseguir insistir no seu próprio andamento, preocupar-se em demasia com a opinião alheia, afastar-se do seu Deus ou dos seus deuses, isolar-se da sua própria revitalização, deixar-se envolver exageradamente na domesticidade, no intelectualismo, no trabalho ou na inércia, porque é esse o lugar mais seguro para quem perdeu os próprios instintos.
Recear aventurar-se ou revelar-se, temer procurar um mentor, mãe, pai, temer exibir a própria obra antes que esteja perfeita, temer iniciar uma viagem, recear gostar de alguém ou dos outros, ter medo de não conseguir parar, de se esgotar, de se exaurir, curvar-se diante da autoridade, perder a energia diante de projetos criativos, encolher-se, humilhar-se, ter angústia, entorpecimento, ansiedade.
Ter medo de revidar quando não resta outra coisa a fazer, medo de experimentar o novo, medo de enfrentar, de exprimir sua opinião, de criticar qualquer coisa, de sentir náuseas, aflição, acidez, de sentir-se partida ao meio, estrangulada, conciliadora e gentil com extrema facilidade, de ter sentimentos de vingança.
(...) Tendo a Mulher Selvagem como aliada, como líder, modelos, maestra, passamos a ver, não com dois olhos, mas com a intuição, que dispõe de muitos olhos. Quando afirmamos a intuição, somos, portanto, como a noite estrelada: fitamos o mundo com milhares de olhos.
(...) Aproximar-se da natureza instintiva não significa desestruturar-se, mudar tudo da esquerda para a direita, do preto para o branco, passar o oeste para o leste, agir como louca ou descontrolada. Não significa perder as socializações básicas ou tornar-se menos humana. Significa exatamente o oposto. A natureza selvagem possui uma vasta integridade.
(...) A mulher selvagem é a origem do feminino. (...) É o momento imediatamente anterior àquele em que somos tomadas pela inspiração. (...) É ela quem se enfurece diante da injustiça. É a criadora dos ciclos. É à procura dela que saímos de casa. É à procura dela que voltamos para casa. Ela é a raiz estrumada de tods as mulheres. Ela é tudo que nos mantém vivas quando achamos que chegamos ao fim. Ela é a geradora de acordos e idéias pequenas e incipientes. Ela é a mente que nos concebe; nós somos os seus pensamentos.
(...) Para encontrar a Mulher Selvagem, é necessário que as mulheres se voltem para suas vidas instintivas, sua sabedoria mais profunda’.
Como Clarrisa é uma contadora e estudiosa de histórias, no livro ela apresenta uma série de mitos, contos de fadas, lendas do folclores e outras histórias, por meio das quais, a mulher pode se ligar novamente aos atributos saudáveis e instintivos do arquétipo da mulher selvagem. Segundo ela, ‘as histórias são bálsamos medicinais. (...) A cura para qualquer dano ou para resgatar algum impulso psíquico perdido está nas histórias. (...) Nas histórias estão incrustadas instruções que nos orientam a respeito das complexidades da vida. As histórias nos permitem entender a necessidade de reerguer um arquétipo submerso e os meios para realizar essa tarefa.’
Ressalta que muitas vezes as histórias são ‘purificadas’. Há suspeitas de que os famosos irmãos Grimm, por exemplo, tenham coberto antigos símbolos pagãos com outros cristãos, de tal modo que uma velha curandeira num conto passava a ser uma bruxa perversa; um espírito transformava-se num anjo; um véu ou coifa iniciática tornava-se um lenço; ou uma criança chamada Bela (nome costumeiro para a criança nascida durante os festejos de solstícios) era rebatizada de Schmerzenreich, Dolorosa. Os elementos sexuais eram omitidos. Animais e criaturas prestimosas eram transformados em demônios e espíritos do mal. E assim, perderam-se muitos dos contos femininos que continham instruções sobre sexo, amor, dinheiro, casamento, parto, morte e transformação. ‘Da maioria das coletâneas de contos de fadas e mitos hoje existentes foi expurgado tudo o que fosse escatológico, sexual, perverso, pré-cristão, feminino, iniciático, ou que se relacionasse às deusas; que representasse a cura para vários males psicológicos e que desse orientação para alcançar êxtases espirituais’.
Seu trabalho ao longo de anos tem sido reconstruir histórias. Busca seus esqueletos ou partes dele, como uma intensa escavação paleontológica, compara versões e utiliza elementos arqueológicos das próprias culturas ancestrais, como imagens, máscaras, cerâmicas, para tentar recriar o original. A cada capítulo traz uma história e uma interpretação dela, fazendo o vínculo com a Mulher Selvagem.
É uma leitura muito interessante para mulheres que desejam encontrar-se por inteiro, buscar suas origens, compreende o poder e a utilidade da intuição e dos instintos e que, claro, estejam no momento para isso, pois definitivamente não é uma atividade de puro entretenimento e lazer.
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