Sou servidora pública. Por vocação, com muito orgulho e prazer. Estou na instituição que escolhi, sigo a carreira que gosto, trabalho muito, sinto-me realizada com que faço, acho que faço bem, sou reconhecida e feliz. Batalho por fazer jus a cada centavo que me é pago pela sociedade brasileira.
Sinto-me incomodada, portanto, quando se generalizam comentários ou se dissemina um estigma de servidor público acomodado e incompetente. Tenho muitos colegas extremamente bem preparados, que realizam trabalhos fantásticos e que, certamente, contribuem para fazer deste um país melhor.
Por outro lado, também me sinto incomodada por saber que, infelizmente, esse panorama não está nem próximo da totalidade do que temos por aí. E algumas vezes tenho a oportunidade de estar defronte ou de saber de histórias que mostram isso com muita clareza. É bem verdade também que quanto menor, ou mais afastada, ou mais distante dos olhos fiscalizadores (da mídia, do cidadão, dos órgãos de controle) é a cidade, mais complicada é a situação.
Meus pais moram numa pequena cidade (com cerca de 60 mil habitantes) do estado de Goiás. Apesar de relativamente miúda, talvez seja o maior pólo turístico do estado e, teoricamente, deveria dispor de uma infra-estrutura capaz de atender com qualidade e segurança as milhares de pessoas que visitam o local, bem como disponibilizar serviços que facilitassem a vida das pessoas. Mas a coisa não é bem assim.
Em época de alta temporada, o sistema de água e energia é ineficiente. Não são incomuns os apagões nem o desabastecimento de água. Ainda assim, não se vê um plano diretor ou uma política de desenvolvimento para o local. Erguem-se altos edifícios ao bel prazer dos donos da cidade (há dois grupos que mandam no local e alternam-se no poder como os velhos coronéis do Nordeste). Sustentabilidade é palavra que não se fala por aquelas bandas.
O trânsito, especialmente nessas ocasiões, torna-se caótico - além do excesso de veículos para a capacidade das vias, observa-se o total descaso às leis. Para se ter uma idéia do ideário local, uma vez meu pai foi reclamar com um guarda de trânsito que não tomou nenhuma medida com um motorista que fizera uma manobra perigosa, bem à sua frente, criando um retorno inexistente no meio de uma rua de grande circulação. A resposta que ele obteve foi, no mínimo, interessante. "Senhor, eu não posso fazer nada! Era um turista. Se a gente multar os turistas, eles não voltam!"
Imagino que a França, país que mais recebe turistas estrangeiros no mundo, deve adotar essa mesma política, para serem tão bem sucedidos.
Nos hotéis ou clubes, cheios de piscinas, tobogãs, idosos e crianças, não há salva-vidas, brigadas de incêndio, desfibriladores, nem pessoas preparadas para prestar primeiros socorros em caso de qualquer urgência.
Recentemente, os dois foram atores de uma estória inusitada. Estavam a fazer compras num dos poucos mercados da cidade (alegria de aposentado é conversar com gerente de banco e fazer pesquisa de preços em supermercado). Brincadeirinha politicamente incorreta, deixa prá lá! Minha mãe pousa os óculos de sol numa prateleira e passa o olhar pelos produtos próximos. Alguns segundos depois, volta para pegar o óculos. Eis que não está mais lá. Pergunta para o meu pai, dá uma olhada em volta, mas não vêem nada ou ninguém. Decidem procurar a gerência, informar o ocorrido e pedir para ver a filmagem das câmaras de segurança - de repente a pessoa ainda poderia estar na loja e eles recuperariam o objeto. Ledo engano. Foram informados que as câmeras só eram ligadas à noite. Como expressaram sua chateação, o atendente achou por bem chamar a “advogada” do supermercado – até então eu desconhecia essa profissão. A moça chegou, já pronta a defender os interesses do estabelecimento – como se fossem diferentes dos do cliente, explicando que o mercado não era obrigado a manter ligadas as câmeras de segurança. Meu pai concordou, mas achou que eles deveriam, então, procurar manter a segurança dentro do supermercado. Ela achou que ele estava falando alto e se sentiu desacatada – ‘o senhor está me desacatando! Você sabe quem eu sou? (há quanto tempo não ouvia isso, achei que já estivesse fora de moda!) – Não! – Eu sou a advogada do supermercado! – Hmmm, e a senhora? Sabe quem eu sou? – O senhor é advogado? – Não, sou um cidadão que quer ter seus direitos respeitados. E quer saber? Advogada ou gari, para mim é a mesma coisa. Trato os dois com o mesmo respeito. – O senhor está me comparando a um gari? Isso é desacato de autoridade, eu vou chamar a polícia! – Pode chamar, que eu não tenho nada a temer. (Volta a fita! Quem tinha que chamar a polícia primeiro? Roda a fita, quem é autoridade, afinal?)
Chega a polícia.
- Pois não, o que está acontecendo?
- Nós estávamos fazendo compras no mercado, o óculos de minha esposa foi furtado de cima de uma prateleira e a gente quer fazer queixa.
- (A advogada) Vocês vão querer fazer queixa por causa de um óculos que deve ter custado dez reais?
- (Minha mãe ofendida) Olha, minha senhora, primeiro, que não custou dez reais, não, era um óculos muito bom! E mesmo que tivesse custado 1,99 era meu e ninguém tinha direito de pegar. (Deveria ter acrescentado: e se dez reais não faz diferença para você, eu vou entrar aqui, pegar algumas mercadorias e sair sem pagar, já que isso não tem nada de mais)
Depois de mais um capítulo de bate-boca decidem ir à delegacia. Chegando lá, vão falar com o policial/ escrivão / delegado, sei lá quem os recebeu (que, registre-se, estava desocupado):
- Pois não...
- Nós queremos dar queixa do furto de um óculos.
- Vocês vão querer fazer registro do furto de um ÓCULOS??? Meu senhor, com tanto estupro acontecendo por aí, o senhor vai querer dar queixa de um óculos??
- Vou. Vou porque o óculos era meu e ninguém tinha o direito de pegá-lo e de mais a mais o estuprador de hoje foi o cara que roubava óculos ontem e que vocês não pegaram. Porque é assim: primeiro o cara rouba um óculos, uma banana; depois uma bicicleta, um aparelho de som; e como nada acontece com ele, logo ele está estuprando, seqüestrando, matando ... (Adorei essa teoria!)
A contragosto, para não discutir, o camarada que está ali para prestar um serviço de qualidade ao público da cidade, faz a tão pedida ocorrência – que, obviamente, não levará a nada, nem a ninguém, nem evitará próximos delitos.
A pergunta que não quer calar desde então é: a partir de quantos reais ou que tipo de coisas podem ser usurpadas de outrem para começar a se considerar crime? Há um artigo no código penal que defina isso?
Nesta hora, me dá uma inveja dos Estados Unidos, que condenaram recentemente a 8 meses de prisão e, depois, a retornarem a seu país (que tinha quer ser este aqui de onde vos falo!) os chefes de certa Igreja, por entrarem no país com 56 mil dólares não declarados. Aqui, ainda, o elemento anda com dólar escondido na cueca, transita com mala cheia de milhões e consegue escapar sem nem explicar. Mas tenho esperança de viver para ver isso mudar.
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